sábado, 31 de maio de 2008

Medo da Eternidade

Algumas coisas são fantásticas para nos tirar da realidade e promover momentos (nem que sejam mínimos) de sublimação. Já comecei a falar disso no "Banho da Madrugada" e vou completar o raciocínio em outro momento. Recentemente passei por uma situação bem complicadinha, e estava a três quarteirões da Av Paulista. Andei como uma flecha toda aquela avenida doida (que eu amo!). O frio estava de rachar mas minha cabeça estava tão quente que fui me despindo dos casacos até restar uma camiseta. Sem saber (e sem ter) o que fazer, andei, andei, andei e parei na Livraria Cultura. Li três contos da Clarice Lispector e ouvi (pelo menos os 30 segundos que permitem) as 32 faixas do novo album (duplo!) do magnânimo Jorge Drexler. Voltei pra casa onde estava hospedada com as idéias mais organizadas, tentando ver os habitantes (e as situações) que passavam por mim sob a ótica da Clarice e cantarolando os minutos não liberados pela livraria. Devo ter cantado as 32 faixas, palavra por palavra, e não duvido que tenha sido em ordem.
Enfim, segue um texto da Clarice que me marcou desde a escola, daquelas aulas de português ora enfadonhas, ora reveladoras. Só ela pra ver o mundo assim, impregnando a simplicidade da maior intensidade que se possa alcançar.
Lá vai!
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Medo da Eternidade


Jamais esquecerei o meu aflitivo e dramático contato com a eternidade.
Quando eu era muito pequena ainda não tinha provado chicles e mesmo em Recife falava-se pouco deles. Eu nem sabia bem de que espécie de bala ou bombom se tratava. Mesmo o dinheiro que eu tinha não dava para comprar: com o mesmo dinheiro eu lucraria não sei quantas balas.
Afinal minha irmã juntou dinheiro, comprou e ao sairmos de casa para a escola me explicou:
- Como não acaba? - Parei um instante na rua, perplexa.
- Não acaba nunca, e pronto.
- Eu estava boba: parecia-me ter sido transportada para o reino de histórias de príncipes e fadas. Peguei a pequena pastilha cor-de-rosa que representava o elixir do longo prazer. Examinei-a, quase não podia acreditar no milagre. Eu que, como outras crianças, às vezes tirava da boca uma bala ainda inteira, para chupar depois, só para fazê-la durar mais. E eis-me com aquela coisa cor-de-rosa, de aparência tão inocente, tornando possível o mundo impossível do qual já começara a me dar conta.
- Com delicadeza, terminei afinal pondo o chicle na boca.
- E agora que é que eu faço? - Perguntei para não errar no ritual que certamente deveira haver.
- Agora chupe o chicle para ir gostando do docinho dele, e só depois que passar o gosto você começa a mastigar. E aí mastiga a vida inteira. A menos que você perca, eu já perdi vários.
- Perder a eternidade? Nunca.
O adocicado do chicle era bonzinho, não podia dizer que era ótimo. E, ainda perplexa, encaminhávamo-nos para a escola.
- Acabou-se o docinho. E agora?
- Agora mastigue para sempre.
Assustei-me, não saberia dizer por quê. Comecei a mastigar e em breve tinha na boca aquele puxa-puxa cinzento de borracha que não tinha gosto de nada. Mastigava, mastigava. Mas me sentia contrafeita. Na verdade eu não estava gostando do gosto. E a vantagem de ser bala eterna me enchia de uma espécie de medo, como se tem diante da idéia de eternidade ou de infinito.
Eu não quis confessar que não estava à altura da eternidade. Que só me dava aflição. Enquanto isso, eu mastigava obedientemente, sem parar.
Até que não suportei mais, e, atrevessando o portão da escola, dei um jeito de o chicle mastigado cair no chão de areia.
- Olha só o que me aconteceu! - Disse eu em fingidos espanto e tristeza. - Agora não posso mastigar mais! A bala acabou!
- Já lhe disse - repetiu minha irmã - que ela não acaba nunca. Mas a gente às vezes perde. Até de noite a gente pode ir mastigando, mas para não engolir no sono a gente prega o chicle na cama. Não fique triste, um dia lhe dou outro, e esse você não perderá.
Eu estava envergonhada diante da bondade de minha irmã, envergonhada da mentira que pregara dizendo que o chicle caíra na boca por acaso.
Mas aliviada. Sem o peso da eternidade sobre mim.

(LISPECTOR, Clarice. Medo da eternidade. In: A descoberta do mundo. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1984. p. 446-8.)







5 comentários:

Ana Chaves disse...

Essa Clarice é sem comentários!!!

=***

Anônimo disse...

meodeos! como eu adoro os textos dela.

é dela mesmo? autoria confirmada?
outro dia creditaram a ela um texto de outra pessoa. passei vergonha!

enfim, há males q vem pra bem, né dani?!?

quem trouxe a dani pra nós?
ahá!
beijão!

ah, te add no meu blog.

Dani Amorim disse...

*Aninha, sem comentários MESMO!

*Drika, esse texto é dela mesmo. Pelo meno foi isso que me disse a "tia Ana Catarina", nas aulas de Português da escola. No final do texto tem a referência certinha de onde foi tirado.
É engraçado como o povo acha q tem q ter um "nome de peso" p um texto circular e ter crédito... Tem coisas q até enganam, mas outras chegam a ser MEGA-RIDICULAS, nao localizadas no tempo e no espaço do escritor! ahahaha
Bem, até dia desses brindamos ao Queiroz... mas tá bom né? Não vamos super-estimar os poderes do "Homem Coxinha". hahahahah

Surfista disse...

Só você mesmo para percorrer as ruas de Sampa com a Clarice Lispector ecoando em seus pensamentos - e com a trilha de Jorge Drexler. Você enxerga um mundo diferente das pessoas "normais". Que bom!

Dani Amorim disse...

Surfista, ainda bem q vc colocou a ultima frase: "Ainda bem", pq assim eu tomo o "diferente das pessoas normais" como elogio!

(ah, devo ver diferente mesmo... vc nao viu o dia q sai de short em plena av Paulista tomando uma long neck, depois de ter suado horrores fazendo esgrima e arco e flecha no pátio do masp. Era engraçada a cara de "Ooooodxio" do povo. La vc pode sair c uma melancia na cabeça q ninguem te nota. Mas EX-PE-RI-MEN-TE sair com "cara de férias" p vc ver! Parecem q vao te engolir de RAIVA!
hahahahahahhahahahah