segunda-feira, 10 de março de 2008

Sobre Títulos e Pensar por Si


(Vou inverter e dar os créditos antes do texto. Esse é um ctrl C, ctrl V diretamente do maodupla.blogspot.com , da autoria do meu amigo Gabriel. Ele tem o incrível poder de me fazer bradar com frequência: "Taquipa, queria ter escrito isso!". Ainda mais que li essa postagem dele nessa minha fase doida de perseguir o título a duras penas...)



Há uma verdadeira adoração aos títulos na nossa sociedade. Até em cumprimentos coloquiais podemos ver uns chamando os outros de "Mestre", "Doutor", "Capitão"...

E, em tempos de profunda crise e falta de empregos, está aberta a temporada de caça aos títulos. Corra já atrás do seu antes que acabe! Os estudantes agora não tendo mais onde trabalhar vão simplesmente ficando na universidade por falta de opção e acabam, naturalmente, conseguindo os tais títulos. Tornam-se Mestres e depois, naturalmente, Doutores até que finalmente saem do país! Mas que maravilha, "foi estudar na Zoropa"! É praticamente ascender aos céus. Ascender aos céus, mesmo. Literalmente! Porque quando voltam alguns se comportam como se fossem verdadeiros deuses.

A ostentação do título é normal e acredito que já tenha sido verificada amplamente por qualquer pessoa. Há doutores que fazem questão de serem chamados por Doutor. Não que haja algo errado nisso mas o tipo de reflexão que quero provocar é tal: e o que há realmente por trás de um título? Será que o título significa realmente tudo que normalmente é considerado?

Semana passada estive presente, quase por um acaso, em uma reunião de acadêmicos. Havia um evento cultural e compareci por interesse em assistir a apresentação. Fiquei surpreso com a incrível demonstração de "ostentação titular" que ocorreu. Uma apresentadora, antes do evento começar, explicou que aquele acontecimento era em comemoração a um outro evento da entidade e que iria apresentar a todos os membros de seu corpo. Ao fazê-lo, exigia que o referido membro se levantasse enquanto seu currículo era lido em voz alta. Os olhos de cada um dos ali presentes brilhavam! Mestrado não sei onde, Doutorado na casa da mãe-de-pantanha, Pós-Doutorado na casa-de-chapéu. Um homem do meu lado quase que chorava de emoção.

Após a apresentação de todos os membros deu-se início a apresentação que tanto esperava. Quinze minutos depois de ter iniciado eu já não conseguia ficar lá. Tinha que ir embora. Meu tempo estava sendo desperdiçado tamanha era a falta de qualidade. Comecei a ficar inquieto e o foco de atenção se desviou do palco à platéia. Qual foi minha surpresa! Os doutores, supostas pessoas de cultura, cujo conhecimento repousa intocável dentro de suas cabeças, estavam todos "embevecidos" com a apresentação. Não obstante o nível artístico fosse baixíssimo, nenhum dos ali presentes parecia se incomodar. Muito pelo contrário. As expressões marcadas em seus rostos eram de admiração e deslumbramento.

Como se confunde cultura com escolaridade, não?! Escolaridade não implica cultura. Ver todos aqueles doutores fazendo cara de admiração ao assistir a uma performance artística de tão baixo nível me fez ter mais certeza ainda desta tese. Foi uma pequena amostra.

O que significa ser Doutor? Significa possuir mais cultura ou conhecimento? Acredito que não. Só significa que alguém passou mais tempo dentro da sala de aula lendo o que os outros escreveram e escrevendo o que os outros querem que ela escreva. Não mais, não menos. Schopenhauer disse, em seu texto "Do pensar por si" (A Arte da Literatura, capítulo 5),

[...] muita leitura retira toda a elasticidade da mente; é como manter uma fonte continuamente sob pressão. Se um homem não quer pensar por si, o plano mais seguro é pegar um livro toda vez que não tiver nada para fazer. É esta prática que explica por que erudição torna a maior parte dos homens mais estúpidos e tolos do que são por natureza [...]

Ora, não parece aqui que a maioria trabalha justamente desta forma no nosso ensino superior?

Schopenhauer vai além.

"O homem que pensa por si forma suas opiniões e apenas posteriormente aprende as autoridades sobre estas, quando servem somente para fortalecer sua crença nelas e em si. Mas o filósofo livresco parte das autoridades; lê os livros de outrem, coleta suas opiniões, e assim constitui um todo para si – de tal forma que se assemelha a um autômato, cuja composição não compreendemos. Contrariamente, aquele que pensa por si se empenha como um homem vivente feito pela Natureza. A mente pensante é alimentada pelo ambiente, a qual então forma e dá origem à sua criação.

(..) as aquisições intelectuais do homem que pensa por si são como uma pintura refinada cheia de vida – na qual a luz e a sombra estão corretas, o tom é contínuo e a cor perfeitamente harmonizada. Por outro lado, as aquisições intelectuais do mero homem do conhecimento são como uma grande paleta cheia de todos os tipos de cores que, no máximo, estão organizadas sistematicamente, mas sem harmonia, relação e significado."


O que Schopenhauer diz parece se encaixar perfeitamente neste caso (o de portadores de títulos que não possuem cultura "à altura" - se é que isso existe - dos títulos que carregam). Seu conhecimento profundo acerca de um mesmo tema parece não se conectar a toda a teia de conhecimentos que a Humanidade já construiu. Parece algo artificial. São, na verdade, ultra-especialistas. Gosto de dizer que são "especialistas em girar porcas XT-R45-F/2 12 graus para a direita". Se questionados para que girem para a esquerda não saberão fazê-lo.

O que venho dizer é que cultura não depende de título. Isso não significa que não haja doutores e mestres com extrema cultura e um conhecimento realmente natural, como o conceito de Schopenhauer. Mas, como em todas as camadas sociais e culturais, trata-se da extrema minoria. E esses, tenho certeza, não enchem o peito para que os chamem de 'Doutor'.

Não nos deslumbremos somente porque alguém possui um título. O título só significa que o cidadão em questão é um homem do conhecimento. Não um homem que pensa por si, conhece a cultura de onde veio, suas raízes, outras culturas e, assim, faça conexões entre a multiplicidade de visões de mundo. Este último é raro e não depende da escolaridade. Há desde gente simples do povo, que mal sabe ler e até mesmo doutores (que resistiram à 'des-elastilização' da mente, citada por Schopenhauer) que possuem o poder de pensar por si e de conectar o que sabem verdadeiramente com tudo que os cerca. A capacidade de conectar o que se sabe é mais importante. Pensar por si. Pensem por si!

"Pensar por si é esforçar-se para desenvolver um todo coerente – um sistema, mesmo que não seja estritamente completo; nada atrapalha mais esse objetivo que fortalecer a corrente de pensamento de outrem, como acontece por meio da leitura contínua. Esses pensamentos, surgindo cada qual de mentes distintas, pertencentes a diferentes sistemas, trazendo diferentes cores, nunca confluem para um todo intelectual; nunca constituem uma unidade de conhecimento, insight ou convicção; pelo contrário, abarrotam a mente com uma confusão babilônica de línguas." Schopenhauer, Do pensar por si.

“O que homem herda só o pode chamar seu quando o utiliza.” Goethe




2 comentários:

Damine disse...

Gostei do texto, ainda mais tendo acadêmicos na família. E tenhho algo a acrescentar. Há alguns anos, seguiam a vida acadêmica aqueles que tinham vocação. Hoje é uma exigência. Todo mundo quer fazer mestrado, doutorado, não porque gostem da coisa, mas pura e simplesmente para ter um emprego melhor (ou mesmo um emprego qualquer) ou por pura ostentação exigida pela sociedade.

Muito bom texto.

Unknown disse...

Rá! Demorei, mas eis que aqui estou! :D Sem tempo, mas li tudo! E esse texto me lembra uma cena de "Gênio Indomável", aquela em que Matt Damon coloca o 'playboyzinho-sem-opinião-própria' no lugar dele. eheheh E sim, é isso o que tenho visto, pelo menos dentro do círculo de pessoas com as quais me relaciono: graduados sem emprego, sem alternativas. Mestrandos sem vocação. Salvo exceções, claro.

Xauxau! :*